Homem, 33 anos, casado, triatleta, MBA no exterior, fala várias línguas, executivo de empresa, considerado high potential na empresa em que trabalha. Bem relacionado com seus pares, executa corretamente sua função. Sempre bem avaliado, está na linha de sucessão da empresa e se prepara para assumir uma função com mais responsabilidades em breve.
Este indivíduo entra na minha sala à procura de sessões de psicanálise. A queixa é dita de maneira bem objetiva: não dorme à noite, sente-se ansioso e precisa resolver logo este problema. Afinal, este issue está atingindo sua performance no trabalho. Tenta relaxar acordando bem cedo para dedicar-se a um treinamento árduo e revigorante de triátlon. Treinar é sua terapia, performance seu DNA. Relata suas funções na empresa de maneira precisa e organizada. É gestor de uma equipe de mais de 40 pessoas, espalhadas pelo mundo afora.
A sessão com este paciente é repleta de relatos do cotidiano, contados de maneira clara e objetiva, mas sem demonstrar qualquer percepção da existência da psicanalista que ali o escuta. Não existe pessoa por trás da fala, não existe psicanalista na sessão, apesar de claramente ser este um homem de bem. Os relatos são um conjunto de frases alinhavadas, mas sem significação de fato, repletos de jargões corporativos e com uma coerência lógica impecável.
Esta descrição apenas ilustrativa concentra uma série de características presentes de maneira contundente em grande parte dos pacientes que hoje procuram por sessões de psicanálise. De 15 a 50 anos, adolescentes propriamente ditos ou adultos eternamente jovens, a maioria, com nuances e intensidades distintas, possuem relatos pobres de subjetivação, falsos em sua essência e muito longe de atingirem o verdadeiro self que possa habitar aquele corpo. Pessoas que chegaram ao auge da robotização e simplesmente executam tarefas. Não existem do ponto de vista do amadurecimento pessoal e são produtos de um processo de submissão ao meio. Esta vida sem sentido é uma sucessão de tarefas que são executadas sempre em nome de uma entidade maior: minha promoção, o cargo que ocupo, a colocação que preciso atingir no vestibular, o orgulho de ser o filho que deu certo... Enfim, a legitimação do que Winnicott chama de falso si-mesmo:
Quando um falso self se torna organizado em um indivíduo que tem um grande potencial intelectual, há uma forte tendência para a mente se tornar o lugar do falso self, e neste caso se desenvolve uma dissociação entre a atividade intelectual e a existência psicossomática (Winnicott, 1983, p.132).
É importante destacar que o indivíduo sadio não usa sua mente ou seus recursos intelectuais para escapar de sua vivência psicossomática; sua existência é fruto da integração entre psique e soma, que é justamente o que traz sentido à vida do ponto de vista do amadurecimento emocional sendo a mente apenas um recurso extra.
Este é um conceito trazido por Winnicott que tem como etiologia os primeiros cuidados que os bebês recebem de suas mães. São as mães que propiciam a integração em seus bebês da psique com o soma por meios dos cuidados iniciais e portanto, esta é uma condição que todos nós já passamos em nossas vidas: bem ou mal todos fomos cuidados por mães ou substitutas e a forma como isso ocorreu diz muito sobre nossa existência.
Isto posto, e sem me aprofundar muito no tema dos cuidados maternos, a intenção não é de forma alguma crucificar os garotos prodígios da geração Y ou os futuros CEOs, mas empregar uma lupa na trajetória pessoal que os fez chegar até o ponto em que se encontram. Será esta uma trajetória alicerçada em um falso ou em um verdadeiro si-mesmo?
Winnicott nos traz uma pista do quanto é difícil para o indivíduo e para a sociedade em geral, lidar com a situação instituída comumente como fracasso, quando a trajetória aparentemente brilhante dos high potentials ou aspirantes a este posto não se concretiza:
O mundo pode observar êxito acadêmico de alto grau, e pode achar difícil acreditar no distúrbio do indivíduo em questão, que quanto mais é bem sucedido, mais se sente falso. Quando tais indivíduos se destroem de um jeito ou de outro, ao invés de se tornarem o que prometiam ser, isto invariavelmente produz uma sensação chocante naqueles que tinham depositado grandes esperanças no indivíduo (Winnicott, 1983, p.132).
Em um passado próximo, encontrava estes sujeitos apenas nas salas de reuniões com suas atuações impecáveis e dignas de um executivo exemplar; hoje, com sorte, encontro-os em meu consultório. Digo com sorte porque muitos não se dispoem a investir um período de suas agendas atribuladas a uma análise a longo prazo.
Para aqueles que se decidem por esta via, temos um trabalho árduo pela frente: anos para o sujeito existir, anos para perceber os outros, anos para começar a viver de maneira genuína. Afinal, foram anos para construir a casca e, portanto, é necessário anos para tentar destruí-la e recompô-la.
Finalmente, esta não é uma apologia à interrupção de carreiras executivas ou do estabelecimento de metas pessoais. É acima de tudo um convite à reflexão para todos que lidam com pessoas, que executam funções, que falam e perpetuam discursos em nome de uma entidade e mudam a vida de outras pessoas por meio destes mesmos discursos.
Você consegue avaliar quantas vezes falou deliberadamente em nome de uma cultura organizacional ou vestiu despretensiosamente a famosa camisa (outro jargão comum) sem ao menos acreditar nela? Você já percebeu quantas vezes, visto de outro ângulo, se submeteu a uma cartilha de imposições que mudou radicalmente sua vida?
Escrevo este texto, tocada por reflexões a respeito das inúmeras formas de existir, coexistir ou se anular na vida por meio de imposições do mundo do trabalho, em que o fazer precede qualquer possibilidade de ser.
Referência bibliográfica:
Winnicott, D. W. (1960): Distorções do ego em termos de falso e verdadeiro "self". In D. Winnicott (1983), O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas (1965b).
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