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  • Foto do escritorFernanda Cristina Dias

Suicídio: matar ou morrer?


Segue abaixo minha fala na Roda de Conversas com os alunos de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie proferida em 10 de setembro de 2018 sobre o tema suicídio:

Gostaria de começar minha fala com a seguinte ideia, mencionada por Leopoldo Fulgencio, um dos comentadores da obra de Winnicott e pesquisador da USP, em seminário proferido no Instituto Sedes Sapientiae no dia 29 de agosto deste ano: “O suicida não quer morrer, ele quer matar”. Acrescentaria a esta ideia, que o suicida quer recomeçar, por mais paradoxal que seja esta afirmação.

Para entender o que está em jogo nesta busca pelo ato de matar que trás implícita a intenção de recomeçar, é importante entender o que este frase significa e como podemos compreendê-la sob o ponto de vista de Winnicott.

Sabe-se que o suicídio, segundo dados da OMS, atinge mais fortemente a população de jovens entre 15 e 29 anos e este índice vem crescendo no Brasil. No entanto, conforme assinala Faria (2007), que se dedicou a estudar o suicídio na obra de Winnicott,

No tocante ao período do amadurecimento em que tal ocorrência pode se dar, o autor [Winnicott] deixa claro que o impulso autodestrutivo pode estar presente já na infância, oculto sob uma inocente esfregação dos olhos (Winnicott, 1944a/2000, p. 152), ou mais explicitamente, no brincar angustiado do garoto que desenha um navio, que atacado, naufraga sem esperança, juntamente com seu capitão. Pode também permear a luta incessante do adolescente para tornar–se real, ou a percepção do adulto de qualquer idade, sobre a vacuidade de suas incursões pela vida profissional, amorosa ou social.

Independentemente da idade em que os impulsos autodestrutivos apareçam, o que parece haver em comum entre cada uma delas é a impossibilidade do indivíduo de sentir-se real e verdadeiro de modo que sua vida faça algum sentido. Em meio às frustrações da vida cotidiana, não há esperanças em enfrentá-las e o eu, despedaçado, sucumbe.

Para entender este processo de desfragmentação do eu, que se refere a uma falha anterior em um dado momento da relação mãe-bebê, é importante resgatar algumas formulações de Winnicott sobre os conceitos de verdadeiro e falso self.

Segundo Winnicott, “No estágio inicial o self verdadeiro é a posição teórica de onde vem o gesto espontâneo e a ideia pessoal. O gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação. Somente o self verdadeiro pode ser criativo e se sentir real” (Winnicott, 1965b/ 1983, p. 135, grifos nossos).

Desta forma, a mãe que permite que seu bebê se expresse livremente e que sustenta a ilusão de onipotência, dá o sentimento no bebê de criar o seu próprio mundo, segundo suas necessidades pessoais – por exemplo, o bebê faminto que é amamentado por uma mãe suficientemente boa que apresenta o seio ao perceber as necessidades de seu filho, permite que ele tenha a ilusão de ter criado o seio no momento em que precisava.

Uma das funções do falso self é proteger o verdadeiro self e fazê-lo começar a existir nas relações com o mundo. À medida que o bebê começa a se individualizar como pessoa, separando-se de sua mãe de maneira gradual, o falso self auxilia neste processo de mediação eu versus não-eu, garantindo certa adaptação do bebê ao que é externo sem perder totalmente sua individualidade ou capacidade de ser ele mesmo e de sentir-se real. Quando esta transição não ocorre de maneira satisfatória, há a formação de um falso self patológico que age de maneira defensiva e submetida ao ambiente, atuando de maneira cindida e não integrada ao self total, o próprio eu. Nestes casos, o falso self sustenta uma vivência precária do existir, utilizando-se dos recursos mentais como única forma de captar o que vem do ambiente; ou seja, a única possibilidade de existir é encobrindo uma não existência.

Na clínica winnicottiana, podemos identificar diferentes graus de falso self, independente do quadro psicopatológico, observado também em indivíduos saudáveis.

Na saúde, o falso-self é representado pela atitude polida em relação ao ambiente social, podendo agir espontaneamente sem sentir que está se submetendo ao meio. Quando encontramos nosso vizinho no elevador, podemos sorrir e dizer: “Bom dia!”, sem que necessariamente tenhamos tido uma noite muito boa e, talvez, resolver os problemas da noite mal dormida conversando com algum amigo. O nosso falso self em ação nos ajuda a “segurar o nosso coração” sem que no final tenhamos o sentimento de sermos falsos.

Na contramão, nos estados em que o falso-self passa a funcionar de maneira patológica, ele assume o papel do self total como se fosse real, encobrindo o self verdadeiro. Aqui se encontram as psicoses e os transtornos borderline. Nas psicoses, a cisão entre o falso e o verdadeiro self é marcada e em pacientes borderline, ela existe, mas é encoberta por uma aparente “normalidade” apresentada por este tipo de indivíduo. No entanto, nos relacionamentos familiares, de trabalho e que exigem interação com o outro, este funcionamento começa a falhar e fica evidente que não existe uma pessoa total se relacionando, mas sim um funcionamento cindido, ou seja, um eu fragmentado.

Nesta direção, o suicídio aparece como uma possibilidade de proteção do self verdadeiro, na tentativa de sentir-se real frente às dificuldades de uma vida que parece sem sentido.

(...) o falso self tem como interesse principal a procura de condições que tornem possível ao self verdadeiro emergir. Se essas condições não podem ser encontradas, então novas defesas têm de ser reorganizadas contra a expoliação do self verdadeiro, e se houver dúvida, o resultado clínico pode ser o suicídio. Suicídio neste contexto é a destruição do self total para evitar o aniquilamento do self verdadeiro. Quando o suicídio é a única defesa que resta contra a traição do self verdadeiro, então se torna tarefa do falso self organizar o suicídio. Isto, naturalmente, envolve sua própria destruição, mas ao mesmo tempo elimina a necessidade de sua existência ser prorrogada, já que sua função é a proteção do self verdadeiro contra insultos (Winnicott, 1965b/1983, p.131)

O indivíduo que tem ideação suicida ou efetivamente concretiza o ato não encontra no ambiente nenhuma condição de sentir-se autêntico e é neste sentido que ele quer matar sua existência falsa com a sensação de que assim poderá permanecer verdadeiro, como se após a morte fosse possível recomeçar uma nova existência, em outras bases. Ele quer matar, portanto, e não morrer.

Aqui é preciso dizer que o ambiente pode ser entendido como todos os grupos de pessoas que o indivíduo mantém relações interpessoais, sendo as de maior destaque a família, seguida pela escola e pela universidade (para crianças, adolescentes e jovens adultos, respectivamente) e o ambiente de trabalho (para adultos maduros).

É importante ressaltar que necessariamente o indivíduo que se aproxima do suicídio como última possibilidade de resolução de suas angústias certamente já demonstrou por diversas vias seu sofrimento e não foi observado com o devido cuidado.

Em relação às crianças, adolescentes e jovens adultos, faço as seguintes perguntas: Quantos deles convivem ou conviveram efetivamente com pais presentes (me refiro à presença real e não a uma presença falsa ou utilitária)? Quantos deles já demonstraram estar passando por algum problema psíquico, pediram ajuda e receberam como resposta frases normativas do tipo: “Isto passa!”; “É coisa de ‘aborrecente’!”; “Você não deveria estar se sentindo assim...” etc. No ambiente escolar ou acadêmico, quantos deles tiveram que se submeter a uma série de imposições que exigiram desempenho e os classificaram como aptos ou inaptos, capazes ou incapazes, medidos segundo uma régua externa que, dependendo das bases existenciais a que estão estruturados, pode ter reforçado o sentimento de vazio ou futilidade?

Adicionalmente, os inúmeros transtornos psiquiátricos a que crianças, cada vez mais precocemente estão sendo acometidas, não seria um exemplo do quanto não estão sendo vistas e escutadas por seus pais e pela escola? Ao que parece precisam de nomeações patológicas para adquirir alguma identidade aos olhos dos outros, daqueles que não sabem lidar com uma criança que não se adapta, e que encontra no sintoma uma via para expressar que algo não vai bem, como resposta à pressão para que se submeta.

Na vida adulta, da mesma forma, as exigências em torno de se obter uma trajetória profissional ideal ou uma vida pessoal em que as dificuldades de qualquer espécie devem ser negadas, podem reforçar o sentimento de futilidade e culminar em uma vida desprovida de sentido.

Sejam crianças ou adultos, aqueles que veem no suicídio uma saída possível para serem verdadeiros precisam ser acolhidos por meio de uma escuta presente e real. Para estas pessoas, poder encontrar alguém que seja testemunha de seu sofrimento diante do sentimento de irrealidade por experimentarem uma espécie de vida falsa é o primeiro passo para sentirem-se autênticos, sem terem que encontrar no suicídio a única saída. Testemunhar não é ser cúmplice, mas sim estar presente diante da fala de quem sofre; é tornar possível que uma narrativa própria seja construída, com sujeito em primeira pessoa: “Eu sinto que não existo”, por exemplo. Quantos de nós estamos preparados para lidar com uma frase como esta sem logo pensar em oferecer uma solução pronta, de “prateleira”?

Gostaria de finalizar minha fala com a seguinte citação de Winnicott:

(...) As mais agressivas e por isso mais perigosas palavras do mundo são encontradas na afirmação EU SOU. É preciso admitir, no entanto, que só aqueles que alcançaram o estágio de fazer esta afirmação é que estão realmente qualificados para serem membros adultos da sociedade (Winnicott, 1986b/1996, p.110).

Obrigada!

Referências

Faria, F. D. M. (2003): O suicídio na obra de D.W.Winnicott: elementos para a formação de uma teoria winnicottiana do suicídio, Tese (Doutorado em Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

Winnicott, D. W. (1965b). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

Winnicott, D. W. (1986b). Tudo começa em casa. 2ª. Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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